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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Contemplação e educação da vontade

Contemplação e educação da vontade

Por EVELYN UNDERHILL*

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     A contemplação é o meio de expressão do místico. Numa forma extrema, ela é a retração da atenção do mundo exterior e a dedicação total da mente que, por meios e em graus diferentes, condiciona igualmente a atividade criativa do músico, do pintor e do poeta: liberando a faculdade que permite apreender o Bem e o Belo, eles conseguem entrar em comunhão com o Real. Assim como as “visões” e as “vozes” são geralmente o meio pelos quais a consciência mística torna conhecidas suas descobertas à mente de superfície, assim também a contemplação é o meio pelo qual essa mesma consciência faz suas descobertas e percebe o supra-sensível. O crescimento do gênio efetivo do místico desenvolveu a arte da concentração: e esse crescimento é amplamente condicionado por sua formação.
    

O pintor, quaisquer que sejam suas faculdades naturais, não pode abster-se de certa formação técnica; o músico é sábio ao se familiarizar pelo menos com os elementos do contraponto. O mesmo é válido para o místico. É bem verdade que às vezes ele parece se elevar bruscamente às alturas e conhecer o êxtase, sem preparação, como um poeta pode surpreender o mundo com uma súbita obra-prima. Mas, se não repousarem sobre uma disciplina, esses súbitos e isolados lampejos de inspiração não continuarão produzindo grandes obras. “Ordina quest’amore, o tu che m’ami”: este é o pedido imperativo que a Bondade, a Verdade, a Beleza e cada um dos aspectos da Realidade dirigem à alma humana. O amante e o filósofo, o santo, o artista e o cientista devem, sem exceção, obedecê-lo, ou fracassar.

     Assim, o gênio transcendental, que também precisa ser cultivado, obedece às leis que regem todas as outras formas de genialidade: com efeito, ele não pode desenvolver todas as suas faculdades sem um processo educativo. A estranha arte da contemplação,que o místico é inclinado a praticar no curso de toda sua vida – que se desenvolve passo a passo, juntamente à sua visão e seu amor – exige daquele que a empreende o fastidioso trabalho e o longo treinamento da vontade, que presidem a toda grande realização e que são o preço de toda verdadeira liberdade. É o desejo não preenchido desse treinamento – desse “exercício supra-sensível” – o responsável por aquele misticismo vago, ineficaz e às vezes nocivo que sempre existiu: a emoção cósmica diluída e a espiritualidade claudicante que, poder-se-ia dizer, dependuram-se na barra da saia dos verdadeiros buscadores do Absoluto e que descreditam sua ciência.

     Nesse campo, como em todas as outras artes, inclusive as menores, desenvolvidas pela espécie humana, a educação consiste em grande parte na vontade humilde de se submeter à disciplina e de tirar proveito das lições do passado. A Tradição caminha de mãos dadas com a experiência, o passado colabora com o presente. Cada alma nova e ardente que se lança rumo à meta única do Amor encontra em seu caminho os marcos deixados por outros na via que conduz à Realidade. Se for sábia, ela os observa e nele encontra auxílios para alcançar sua meta, e não obstáculos à liberdade que procede da própria essência da ação mística. Essa ação, bem verdade, é, em última instância, uma experiência solitária, “o vôo do solitário ao Solitário”, ainda que nenhuma realização da alma tenha lugar “in vacuo” nem modifique universo das almas. Ao mesmo tempo, o ser humano não pode separar sua história pessoal da história da espécie humana. A melhor e mais verdadeira experiência não acontece ao excêntrico ou ao peregrino individual que tem como única lei suas intuições, mas, sim, àquele que procura tira proveito da cultura da sociedade espiritual e que ele se encontra, e que submete sua intuição pessoal aos conselhos dispensados pela história geral do misticismo. Os que rejeitam esses conselhos expõem-se a todos os perigos que ameaçam os individualistas, da heresia, num dos pratos da balança, à loucura, no outro. “Vae Soli!” Em nenhuma outra parte observamos tão claramente, como na história do misticismo, a solidariedade essencial do gênero humano e a sanção paga por aqueles que não a querem reconhecer.

     A educação que a tradição sempre prescreveu consiste no desenvolvimento gradual de uma extraordinária faculdade de concentração, de um poder de atenção espiritual. A mera “consciência do Absoluto” não é suficiente se a pessoa não é capaz de contemplá-lo, da mesma forma como a visão e a audição, por mais aguçadas que possam ser, necessitam ser completadas por faculdades treinadas de percepção e receptividade para poderem realmente apreciar – ver e ouvir – as obras-primas da arte ou da música. Mais ainda, a natureza pouco revela de seus segredos a quem nada mais faz que olhar ou escutar com o olho e o ouvido físicos. A condição para tudo ver e ouvir, em cada plano de consciência, não consiste em aguçar os sentidos, mas em adotar, no nível da personalidade inteira, uma atitude especial: uma atenção em que a pessoa esquece de si mesma, uma profunda concentração, uma fusão do Eu que opera uma verdadeira comunhão entre aquele que vê e aquilo que é visto; numa palavra, a contemplação. Assim, a contemplação, em sentido mais geral, é uma faculdade que amiúde pode e deve ser aplicada à percepção, não somente da Realidade divina, mas de
tudo o que existe. É uma atitude mental em que todas as coisas nos entregam o segredo de sua vida. Todos os artistas são, em certa medida, necessariamente contemplativos. Na medida em que se entregam sem preocupação egoísta, eles vêem a Criação do ponto de vista de Deus. “A inocência dos olhos” nada mais é, praticamente, do que isso: e é somente
através dela que eles podem ver realmente as coisas que desejam mostrar ao mundo.

     Convido todos a quem essas proposições pareçam uma mistura de psicologia e metafísica medíocres a liberarem sua mente de todo preconceito e a submeterem essa questão a um teste experimental. Se forem pacientes e honestos – e a menos que não pertençam àquela minoria que é, por temperamento, incapaz do menor ato contemplativo – sairão dessa experiência enriquecidos de um conhecimento novo acerca da relação entre a mente humana e o mundo externo.

     Tudo o que peço é que você fixe o olhar por alguns instantes, com toda a atenção  e querida, numa coisa simples, concreta e externa. O objeto dessa contemplação pode ser uma coisa que o agrade: uma pintura, uma estátua, uma árvore, a encosta de uma colina, uma planta que brota, um curso d’água, pequenas coisas vivas. Não é necessário ir, com Kant, a céus estrelados. “Uma coisa pequenina, não maior que uma avelã” poderá bastar, como aconteceu com Lady Julian, há séculos. Lembre-se de que se trata de uma experiência prática e não de uma bela meditação panteísta. Olhe para essa coisa que você escolheu. Rejeite, com muita vontade mas tranqüilamente, as mensagens que inúmeros outros aspectos do mundo lhe enviam e concentre toda sua atenção nesse único ato de contemplação amorosa, de maneira a excluir do seu campo de consciência todos os outros objetos. Não pense, mas aja de modo a que toda sua personalidade penda para essa coisa: deixe sua alma entrar em seus olhos. Quase instantaneamente, esse novo método de percepção fará aparecer qualidades insuspeitadas no mundo externo. Você primeiro perceberá à sua volta um estranho silêncio, cada vez mais profundo, e a diminuição da atividade de sua mente febril. Em seguida, tomará consciência de que a coisa que você observa adquire mais significado, de que sua existência se intensifica. Enquanto se debruça sobre ela, com toda sua consciência, você receberá em resposta um fluxo que virá ao encontro do seu. É como se a barreira entre a vida dela e a sua, entre o sujeito e o objeto, houvesse desaparecido. Você se fundiu com ela num ato de comunhão verdadeira; conhece agora o segredo de seu ser, profundamente e de modo inesquecível, e, não obstante, de uma forma que você jamais poderá esperar exprimir.

     Vista desse ângulo, uma urtiga terá qualidades celestes, uma galinha malhada terá qualquer coisa de sublime. Nossos grandes amigos, as árvores, as nuvens, os rios, nos iniciam a vastos segredos. “O olho que contempla a eternidade” aproveitou uma ocasião. Fomos imersos, por um instante, na “vida do Todo”: um amor calmo e profundo nos uniu à substância de todas as coisas, um “casamento místico” ocorreu entre a mente e alguns aspectos do mundo externo. “Cor ad cor loquitur”: a vida falou à vida, não à inteligência de superfície. A inteligência de superfície sabe somente que essa mensagem foi verdadeira e bela: nada mais.

     Essa experiência acalmou a consciência de superfície e reuniu todos os nossos centros de interesse dispersos: nós nos entregamos inteiramente a essa única atividade, abandonando toda consciência de nós mesmos, todo pensamento refletido. Refletir é sempre deformar: nossa mente não é bom espelho. O contemplativo, qualquer que seja o plano em que suas faculdades ajam, contenta-se em absorver e ser absorvido; e, através dessa aproximação humilde, ele atinge um plano de conhecimento de que nenhum procedimento intelectual consegue chegar perto.

     Isso não significa que essa simples experiência seja comparável, de qualquer forma que seja, à contemplação transcendental do místico. Entretanto, ela utiliza, em pequena escala e em relação à natureza visível, as mesmas faculdades naturais que o místico emprega – é bem verdade que em outros níveis e submetendo-se ao sentido transcendental – na apreensão da Realidade invisível.

     Uma coisa é ver fielmente, por alguns instantes, a flor na fenda do muro, outra é se elevar até a apreensão da “Verdade Eterna, do amor verdadeiro e da Eternidade”; ambas estas coisas são, todavia, cada qual em seu nível, funções do olho interno que atua quando a mente se retrai provisoriamente.

     A receptividade humilde e a contemplação tranqüila e sustentada, nas quais a emoção, a
vontade e o pensamento se fundem, são o segredo do grande contemplativo, abrasado de amor por aquilo que lhe foi permitido ver. Mas, enquanto a contemplação da natureza implica em nos voltarmos para uma coisa que está indubitavelmente fora de nós, a contemplação do Espírito, na forma com que esta aparece para os que a praticam, requer uma rejeição deliberada das mensagens dos sentidos, uma “introversão” das nossas faculdades, uma “viagem ao centro”. “O reino dos Céus”, dizem eles, “está em ti”: procura-o, então, nos recônditos mais secretos da alma. O místico deve aprender a concentrar todas as suas faculdades, todo seu ser no invisível e intangível; deste modo, ele pode esquecer todas as coisas visíveis e se concentrar tão intensamente nele que todas as outras coisas se esfumam. Ele deve reunir suas faculdades dispersas através de um exercício deliberado da vontade, deve esvaziar seu cérebro de todas as efervescentes imagens e do tumulto de seus pensamentos. Em linguagem mística, deve “mergulhar no vazio”, naquele espaço virgem onde a Razão ativa e hábil não pode penetrar. O todo desse processo, a reunião das faculdades do Eu para voltá-las ao “interior”, a contemplação do território da alma, é a isto que se chama introversão.

* Excerto do livro “Misticismo”, publicado pela AMORC-GLP, de leitura recomendada a todo místico Rosacruz.