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quarta-feira, 26 de maio de 2010

O devir de uma gota d'agua - Um conto alquímico

Por DIEGO CERRATO, FRC
Recordo que tudo era azul profundo, cinza insensível, homogeneidade infinita. No seio de minha mãe Oceano só existe o sono mudo, o prazer intenso de uma eterna letargia cujo sentido começa e acaba em si mesmo; esgota-se no não duvidar, no não pensar, na continuidade do êxtase originário. Na realidade, minhas recordações não são capazes de penetrar tamanha profundidade. Uma quietude gelada absorve as imagens voláteis em uma névoa difusa e oferece alternância de misteriosos mitos gratificantes, que alimentam a mais estranha e temerária imaginação.
Os esforços incertos por rememorar meu passado mais distante projetam em minha mente uma grande compulsão. Não sei como pude passar da minha letargia divina original a tão agitado existir. Uma intensa corrente começou a elevar-me em espiral de forma vertiginosa até envolver-me em minha primeira vibração. Hoje sei que fui transportada por gigantescas ondas em uma tormentosa noite, cuja obscuridade era rasgada sem cessar por raios implacáveis. Foi como uma intensa explosão de vida arrasando a superfície do oceano, deixando em sua carícia furiosa uma tímida camada de consciência fragmentada pela espuma. Nestas condições comecei minha primeira viagem, navegando sem espaço e sem tempo, sem rumo, abandonada nos braços da minha mãe.
O vento me agarrou em suas mãos, precipitando um inesperado parto aéreo. Breve e rápido êxtase onde pela primeira vez, atravessada por um instinto irracional, me dei conta de que era um ser; uma gota de água recém-chegada ao reino de Isis, minha protetora. Estranho instinto, primeira semente de pensamento que adornou minha mente, começo da peregrinação que hoje quero relatar ao coração perdido que me escuta.
Desta maneira cheguei a Terra: acabada de nascer; quis o destino conceder-me um elevado êxtase, fazendo transpassar a enorme imobilidade que domina as minhas menos favorecidas irmãs. Graças ao vento, à providência ou quem sabe por simples acaso, se me outorgou um poroso vaso de silício e húmus que prendeu a chispa, aguilhão de minha consciência, dúvida eterna, quintessência da transfiguração. Esta foi, não obstante, minha primeira dor, minha primeira angústia: a submersão na terra que me acolhia.
Comecei a descer lentamente, deslizando entre partículas de silício e restos orgânicos, em meio a uma obscuridade absoluta e hermética. E foi assim que brotaram muitas criações de pensamentos, infinitas perguntas sem respostas, alimentando a dinâmica masoquista de minha desesperada curiosidade, inócua ante tanto desespero: quem sou? Por que estou aqui? Por que penso? Que tenho que fazer? Que sentido tem tudo isto? ... Queria analisar o que até então havia ocorrido, o que estava ocorrendo e o que poderia ocorrer. Minha mente estremecia em um mar de confusão, enquanto eu continuava descendo. Não queria tocar nunca o fundo, porém não foi assim. Cheguei a uma superfície cinza, sólida e compacta, sendo acolhida por uma de suas entidades metalóides. Não tardei em saber que se tratava de um cristal de galena (sulfeto de chumbo). A galena foi o primeiro ser que manteve uma relação amistosa comigo. Vendo-me desesperada, aturdida e desorientada, não hesitou em amparar-me.
- Bem-vinda, querida borbulha aquosa do imenso oceano. Está confusa?
- ... S... sim.
- Nada que desça em tuas mesmas condições deixa de perceber minhas radiações pesadas. Compreendo que isto gera angústia, porém diga-me: isto não é sedutor? Se não fosse, como trabalharia o pensamento?
- Pois... pensando. Está claro, não?
- Sim, muito claro. Porém... acaso não é o pensamento um reflexo de algo? Esse diálogo do ser consigo mesmo, ao qual chamamos pensamento, não reflete a natureza da própria consciência? Um mesmo ser se pergunta e responde. Não estão nele a pergunta e a resposta? Tua mente é o olho de compreensão que se desdobra em todos os seres pensantes do universo. É o olho que tudo vê. Porém não te incitarei mais ponderando o aspecto mental próprio de futuras experiências; o importante agora é que sintas, que abras teu coração para sentir sua pulsação autêntica, seu aroma inconfundível e intransferível. Chegaste a mim envolta em salitre, pesado lastro que obscurece tua vontade e teu entendimento, cadeia que avilta as intenções mais sensatas em cegos arroubos labirínticos. Aqui, onde pousaste, tenho uma grande quantidade de chumbo que absorverá teu salitre como uma esponja selvagem. Sentes sua ação?
- Sim..., estou me limpando, sou mais transparente.
- Bem, só passou um momento. Espera uns minutos veja. Podes deslizar até aquela vala que vê mais abaixo. Perceberás que tem maior conteúdo em prata.
- Oh, sim... realmente. Me encontro mais leve, mais feliz, mais plena. Estou deixando de interessar-me por essas terríveis perguntas que continuamente me bombardeavam sem piedade e sem descanso. A prata que me ofereces embriaga minhas emoções, minha imaginação, meus sonhos. Sim, meus sonhos, porque sonho acordada, maravilhada pelo simples fato de estar envolvida em uma estranha magia que me apaixona. É.. como se houvesse acendido um pequeno fogo que inflama meu coração.
- Sim, você disse: um fogo. É a chama do amor, que inunda com seu êxtase os corações limpos, os pensamentos puros os desejos sinceros. É fácil acender a chama, eliminando o salitre das egoístas paixões baixas, deslizando-se na cândida radiação da prata; porém há quem prefira ver-se manchado por estranhas cores ao invés de atrever-se a reconhecer sua nudez.
- Não é minha intenção reter-te aqui para sempre, ainda que sua alegria seja minha alegria. Aproveite o prateado intenso que possui agora e sonhe, sonhe sem cessar, o importante é que sonhes, pois o único fim do teu sonho deve ser a fonte de amor que não se esgota, que derrama seus eflúvios, convertendo os desertos em frondosos jardins.
E assim me senti possuída por um intenso desejo de sonhar amando, de amar sonhando. Não me dava conta de que pouco a pouco começava a ascender. Ao eliminar o salitre fui atraída por um efeito osmótico que suavemente me arrastava para a superfície do vaso de silício. .
Não tardei a encontrar uma estranha rede de finos pêlos absorventes que roubam impunemente todo o material abandonado mais próximo da superfície. Empenhei-me em evitá-los, para que minha ascensão não fosse bloqueada, e quando me dei conta, havia sido sugada em direção de uma raiz por um daqueles filamentos. Fui parar em uma espécie de túnel, chamado vaso lenhoso, onde me esperava amavelmente uma gota de seiva.
- Bem-vinda, gota de água. Estava te esperando, enquanto observava tua delicada ascensão. Acabas de entrar no reino onde RA constrói o mistério da vida. Os corações sensíveis alcançam a virtude pelo conhecimento, por isso são bem recebidos. Acompanhe-me.
Percorremos largos corredores verticais cruzando com peculiares seres silenciosos.
Uns eram alcalóides, outros taninos e minerais diversos, óleos essenciais... Todos pareciam saber perfeitamente seu destino.
A passagem começou a mudar ligeiramente sua inclinação e suas dimensões se estreitaram consideravelmente. A gota de seiva se deteve:
- Vamos entrar agora em um dos nossos templos sagrados. Ao teu olho será permitido ver a estrutura fisica que encerra o mistério da vida, porém só ao teu coração pode ser revelado o Grande Arcano.
Tendo acabado de falar, fomos absorvidos por uma suave membrana que nos transportou ao interior de uma célula. A gota de seiva me indicou que devia prosseguir sozinha e que ela me esperaria no interior de uma vacuola.
Tinha diante de mim, todo um labirinto de retículo endoplasmático para aceder a um dos poros da envoltura nuclear, sancto sanctórum do Templo. Apesar de ser complicado o trajeto, fui guiada com exatidão por multidões de ribossomos ao longo do caminho. Não pude evitar assombrar-me através de certas janelas que com freqüência apareciam. Graças a elas descobri estruturas sagradas de um potente conteúdo energético. Ali estavam laboratórios alquímicos que transmutam as energias mais sutis da própria vida. Por um lado, as mitocôndrias, onde se realiza a alquimia do oxigênio. Por outro, os cloroplastos,transformando as radiações diretas do próprio RA. Esta era a fábrica da Força Vital, que passava a ser empacotada em pequenas unidades para ser repartida por todo o templo vivente que nos continha. Realizar-se-á em algum outro local uma alquimia tão perfeita? No que me diz respeito, os meus olhos jamais viram tão secretos e silenciosos trabalhos.
Prossegui, tentando vencer a paralisia produzida em mim por tamanha fascinação.Um dos poros da membrana nuclear não tardou em estar ao alcance da minha visão. Silêncio... Tudo se recolhia à minha passagem, ficando o ambiente emudecido, sagrado. Aproximei-me lentamente e atravessei com semblante sereno a abertura inexplorada.
Diante de mim se descortinava a estrutura arcana do mistério da vida: o DNA. Não podia deixar de olhar aquela cromátida rodeada de uma auréola luminosa, sublime. Outra vez me vi possuída por uma estranha embriaguez, porém desta vez havia algo novo. Não era a embriagues sensual do estado de prata, porém algo parecido com uma claridade cristalina que desceu sobre mim enquanto observava, com o olhar absorto, aquele pensamento de Osíris tornado real. Era a inteligência divina, o Espírito Santo que rasgou minha alma, oferecendo-me o mais puro ouro hermético. Não tenho palavras que possam descrever a transmutação espiritual desse momento. Senti que o que estava previsto se havia consumado e iniciei o caminho do regresso.
Reencontrei-me com a gota de seiva. Seus olhos sorriram com satisfação e ternura ao ver-me chegar. Não tinha nada a acrescentar, nada que esclarecer. Simplesmente convidou-me a segui-la novamente.
Saímos daquele templo sagrado e reiniciamos a marcha pelo vaso lenhoso. Sou conduzida a um lugar mais elevado, conhecido como "A Torre da Rosa". Minha atenção volta-se para o fato de que tudo começa a tomar uma tonalidade rubra. Havíamos finalizado nossa viagem em uma das pétalas de uma jovem e viçosa rosa vermelha. Ali, a gota de seiva despediu-se.
- Foi um prazer contribuir com tão elevado propósito. Meu serviço está concluído. Esperarás sentada aqui até que passe a noite. Ao amanhecer, outros horizontes te esperam. Paz profunda, irmã. E retirou-se cortesmente.
Passei uma longa noite sozinha, porém não me importei. Estava digerindo pouco a pouco o resplendor da minha experiência imediata, que por si só constituía o único alimento indispensável para a alma.
E foi amanhecendo. A luz começou a dissipar as trevas da noite: estava chegando o momento da transfiguração.
Quando o sol despontou no horizonte, meus olhos se fecharam docemente. Só que quando voltei a abri-los, estava no interior da pétala como gota de puro orvalho imaculado. No Leste, o Sol grandioso e rubro, com sua perfeita e divina geometria; no Oeste, a Lua tímida, prateada, celeste. Um invisível fogo aqueceu meu corpo, dilatando meu ser com estranha perfeição. Transformei-me em um halo vaporoso que rapidamente começou a elevar-se rumo ao céu infinito. Novamente, o elemento ar foi o suporte do meu segundo nascimento. A glória da minha ascensão escapa deste relato, pois as palavras trariam somente confusão sobre sua essência.
Acabarei dizendo que uma nuvem condensou novamente meu corpo numa arquetípica gota, que terminou fundindo-se na mãe oceano. Ali permaneço infinita, impessoal, atemporal, eterna. E a partir daquele momento, a Mãe Oceano ficou mais sábia, mais pura, mais perfeita.

* Traduzido de "O Rosa+Cruz" n° 9, outono 1995, Grande Loja Espanhola.
Notas:
1. As vacuolas são estruturas celulares, muito abundantes nas células vegetais, contidas no citoplasma da célula. Seu conteúdo é fluido, armazenam produtos de nutrição ou de refugo.
2. O retículo endoplasmático tem função de transporte servindo como canal de comunicação entre o núcleo celular e o citoplasma.

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